Mata Azul
*José da Silva e Albuquerque
Quando se sai por este mundão de meu Deus, quase sempre tangido pela necessidade, vamos deixando pedaços de nós mesmos aqui e ali, marcos do caminho percorrido, como se quiséssemos balizar a volta. Mas o inusitado, como um azorrague nos acompanha e dita os descansos e o campo de luta.
Vou aproveitar para escrever minha chegada a Porto Alegre no Itasussê. A modorrenta Porto Alegre dos anos trinta e nove que renascia no remanso das cinco da tarde, no esplendor de suas mulheres e no bulício que tomava conta da rua da praia.
Era domingo, fazia calor e era também dezembro; a cidade estava deserta. Eu vim para me demorar, por isso não tardei em procurar um lugar para onde meter meus alcotrefes, que com os livros, não eram poucos. Surpresa das surpresas: alguém gritou:
- Albuquerque!
Virei-me e um velho colega e amigo lá de Belém do Pará, vinha abraçar-me. São as surpresas tão in vero semelhantes que nos deixam perplexos. Não se preocupe, nesse calor o que assenta bem é um barril de chope. Pois tudo começou assim, e bem em frente a praça estava a bonança. Nos dessedentamos do corpo e da alma pois já nem me lembrava do banzeiro do navio, e com os pés fincados na terra já me sentia gaúcho potencial na euforia de minha mocidade, do álcool e do feitiço que adivinhei na terra, pegajosa como visgo.
Esses arranjos de chegada são como todos os outros e depende do humor de cada um, daquele que ama acima de tudo a embriaguez da novidade, ou daquele outro que se sente prisioneiro da meticulosidade. Eu queria acima de tudo me embriagar com os odores da terra e sentir-lhe o calor, pois o Mena Barreto me escaldara lá em Minas Gerais da Sibéria que me esperava lá nos pampas. O odor do Rio Grande me fazia lembrar meu adusto Cariri e eu comecei a me identificar com a terra natal que abraçara por opção.
Mas, de que vos quero falar é da mata azul. Não me lembro porque andava por aquelas lonjuras, nas cercanias do seminário de Viamão nos idos de 1939! Embevecido com a natureza, deparei-me com um trato de mata como nunca vira. Era a mata azul. Os pinheiros colgavam com suas copas de um verde esmaecido o azul do céu, e me deram a impressão de que céu e mata se fundiam em um só, já que nunca vira uma floresta nativa de Araucária, uma obra prima de uniformidade, como se todas tivessem o mesmo pulmão e de um hausto, todas pudessem respirar o mesmo céu.
O sol descambava lá no horizonte com essa preguiça pachorrenta de enfeitar a tarde com laivos carmesim de gradações infinitas. A luz do sol de soslaio iluminava a monumentalidade daqueles troncos retilíneos que alcançavam limites do céu e da terra, e no meu alheamento não encontrei nem lágrimas nem contrição para celebrar a ingenuidade de minhas primeiras crenças diante daquele monumento singular que a hora e o silêncio bendiziam.
Não pensem vocês que me abismara em ver a mata azul porque só vira os carrapichos de meu esquelético sertão. Não, eu já vira a mata tropical com seus liames de cipós, a tecedura que por vezes torna-a impérvia, e ai daquele que tem um bom terçado e se sente seguro para desafiá-la. Um aranhol de cipós pode estar a serviço da terrível unha de gato, que dilacera a roupa e, com ela, bons nacos de carne. Cem metros de mata, para quem não é mateiro, é o suficiente para sentir-se perdido e desorientado, porque a mata sufoca e não dá qualquer chance, senão o caminho inverso percorrido para a salvação.
Essa mata primitiva esta no fim, geralmente no pronto-socorro de alguma instituição ou mesmo na UTI de alguma universidade pública que este governo teima em destruir. Mas não nos poderemos esquecer que essa mata forneceu, por sua qualidade e dureza, o madeirame para o nosso surto, o primeiro, da agro industria açucareira.
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*José da Silva e Albuquerque, médico veterinário, paraibano que adotou o Rio Grande.
Observador, registrou suas impressões da cidade e do tempo em que viveu.